quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Raso, bem raso

Outra primavera se iniciava, mas não haviam muitas flores daquele lado do rio. Deitada no trapiche ela observava a sombra das árvores, que descansavam sobre a água. O céu lembrava aquele quadro que um dia viu num livro de artes, cujo pintor tinha um nome muito estranho para memorizar. Apenas conseguiu lembrar que o nome do quadro tinha a ver com doce, baunilha, talvez... Gostava de ficar assim, como se fizesse parte de um desenho, daquela paisagem pintada numa tela. Estagnada na moldura, conseguia viajar horizonte afora. No walkman tocava uma música antiga, vinda de um fita cassete roubada da mãe. Com letras escritas à mão em tinta azul já meio apagadas, lia-se: Novos Baianos. Tinha parado num trecho de uma das músicas: “vou mostrando como sou e vou sendo como posso”, dizia a canção. Ficou inquieta, porque o professor de filosofia tinha tocado num assunto parecido com o que a letra dizia, em alguma aula passada. Fez um esforço pra puxar lá do fundo o que ele teria dito. Não era boa com o exercício de sistematizar as ideias, ao contrário, elas orbitavam, desenfreadas. De repente viu um joão-de-barro dar um voo rasante, parecia que ia mergulhar, mas num instante foi para longe. Se consciência tivesse, o joão-de-barro saberia que é uma espécie de pássaro que constrói uma vez por ano um ninho com barro úmido e pequeninos gravetos e folhagens. Lá cria seus filhotes, que depois despencam para o mundo. Recordou que o professor tinha falado em consciência, de que éramos os únicos no planeta com a capacidade de planejar e, a partir do nosso esforço, conceber. E de que “o meio nos mudava, assim como nós mudávamos as coisas a nossa volta”. Talvez era isso que a música quisesse dizer, um punhado de coisas fez com nos transformássemos no que somos hoje, e a cada dia vamos sendo, prédio e construtor - ao mesmo tempo. Suspirou. Era muito difícil entender toda aquela explicação de existência, deu play: “jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos, e pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto...”

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