quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Sobre meninas e suas mães

Nas incursões pelo youtube.com, dia desses, andei encontrando coisas realmente interessantes. Intitulado ‘Mofo TV’, uma coletânea de vídeos trazem entrevistas da Marília Gabriela, no programa TV Mulher, na década de 80. Minha surpresa (além do cabelo de Gabi, breguíssimo) foi encontrar uma entrevista com a Elis Regina. Sempre a reconheci muito mais pelas músicas do que pela personalidade (ao contrário de muita gente por aí). O vídeo me fez ver o que estava perdendo.

À pergunta aparentemente simplória de Marília Gabriela, de como a cantora dava um jeito de criar os filhos sendo artista, a resposta de Elis já vale o tempo que o vídeo demorou para carregar. A “pimentinha” rebate falando sobre a questão da mulher operária, que ajudava então a “construir o país” e não tinha nem creche para abrigar seus filhos, mas, mesmo assim, dava um jeito. No dilema entre o século XIX e o século XX, saindo da condição de mucama e pleiteando uma vaga à astronauta, as mulheres da década de 80 sentiam ainda mais dificuldades do que hoje para se firmar, tanto no mercado (coisa que hoje em dia até já saiu de moda discutir), como em outras esferas.

Mas Elis diz ainda mais. Fala da filha Maria Rita (lançada como cantora aos 24 anos, com estapafúrdia promoção em horário nobre na TV Globo, carregando a inconfundível marca de filha de Elis), que na época da entrevista devia estar saindo das fraldas. E o que a cantora, mãe de João Marcelo Bôscoli e Pedro Camargo Mariano, (hoje também músicos), fala sobre a menina me marcou profundamente. “É mais difícil ter filha mulher, não dá para explicar. Mas acho que no fundo, com Maria Rita fiquei mais parecida com a minha mãe”. Não, não é nenhuma tentativa de recuperar a letra de “Como Nossos Pais”, ícone de sua carreira, até porque não faria sentido. Mas não sei se eu, mesmo não tendo filho algum, poderia apontar uma comparação mais sublime que essa. Ter uma filha mulher a fez aproximar-se da própria mãe, ficar parecida com ela, tomar para si alguns trejeitos e entender muitas das preocupações que sua mãe tinha com ela, pelo fato (Elis entendia) de ela ser mulher. “Maria Rita me deu uma outra visão e eu batalho para que o seu lado seja mais simplificado”.

A cantora disse que, ao esperar Maria Rita, preparava-se para ter mais um varão. Iria se chamar Thiago. Isso me lembrou a personagem Emma Bovary (que infelizmente é lembrada apenas como ‘a adúltera do romance Madame Bovary, de Flaubert’). Sou péssima em relembrar cenas de livros, mas uma desse em questão eu não esqueço. Grávida, Emma sonha com seu filho, que seria homem, que seria livre, (porque, naturalmente, as mulheres são mais presas às convenções) e que se chamaria Jorge. Emma desmaia ao receber a notícia de que deu à luz a uma menina. Elis diz que tomou a bebê das mãos do médico como se dissesse: “é minha”.

Sim, é mais difícil, como mãe, ter filhas mulheres. Mulheres brigam mais entre si e as cicatrizes são mais profundas (basta lembrar de quantas amigas você já se desentendeu para todo o sempre). Mulheres são capazes de se agredir com palavras e gestos simples, mas simbolicamente mais agressivos. Uma amiga minha diz que a maior humilhação da sua vida foi ter levado um tapa na cara de sua mãe. Filhas mulheres devem ser como um reflexo meio torto e uma forma, como diria Elis, de nos reconhecer nelas.

Creio que tenho pouco da minha mãe. Ela é mais corajosa, porque soube conduzir quatro irmãos pela vida, mesmo tendo perdido a própria mãe e não ter o pai por perto. Deu aos irmãos um rumo e hoje vive longe de todos. Até hoje desconfio que ela chora escondido de saudade. Ela se casou com a idade que tenho hoje e teve o primeiro filho com a idade que terei daqui a nove meses. Encontrou o grande amor da sua vida na janela do apartamento da frente. Enlaçou-se com um promissor gerente de supermercado e hoje, ajuda-o a ganhar o sustento de um jeito meio equilibrista. Não preciso listar tudo o que me faz ser diferente dela. Não teria por quê. Somos diferentes não só por tudo o que já passamos, mas, principalmente, porque ela quis assim.

Lembro-me que, por volta dos 15 anos, uma das coisas que mais me intrigavam era como as pessoas sabiam que o namorado(a)/noivo(a) era a pessoa da vida delas. Ao perguntar para minha mãe, queria receber a resposta óbvia, como “Quando o vi, meu coração disparou”, “Saberia que ele seria o melhor marido e pai do mundo”, etc, etc e tal. Mas eis que ela simplesmente disse que um dia, pouco tempo depois de começarem a namorar, aquele que seria meu pai trouxe-lhe um tapete e disse: ‘pode guardar para o enxoval’. Lembro-me até hoje de mim, na varanda de casa, olhando estarrecida. Não, não poderia ser tão simples como a compra de um tapete.

Li em uma recente reportagem que uma das principais causas dos problemas demográficos do Japão é o fato de a maioria das mulheres do país em idade fértil não querer casar. Comecei a achar que, além de mais evoluídas tecnológica e economicamente, as japonesas também estão a passos luz das ocidentais na questão de escolher o melhor para suas vidas. Mas qual é o porquê da aversão ao casamento? Bem, nossas colegas do outro lado do mundo não querem abandonar o sossego da casa paterna se não for por um rapaz bem-sucedido, com um emprego estável, dedicado, de boa aparência, e que tenha uma boa conversa. Acredite, as japonesas são realistas. Digo isso porque a razão de tantos requisitos é que, como não terão muita perspectiva na carreira (pois a sua sociedade é ainda competitiva e machista), elas sabem que terão de depender de seus maridos. Na falta de candidatos a ocupar o cargo de genro que papai pediu a deus, elas continuam a morar com os genitores. Creio que as japonesas de hoje não estão tão parecidas com as de ontem, mas continuam naquele retrógrado paradigma filha/esposa.

Ao pensar no papel das orientais, ouvir a sinceridade de Elis ao descrever os lacinhos da filha e relembrar a simplicidade da minha mãe ao falar de seu tapete, penso em mim e no quanto estou distante dos lacinhos e dos possíveis tapetes presenteados por gregos.

Até, Beatriz

(“Beatriz, mas quem é tu, para Dante abandonar?” diz um dos versos de Vinícius de Moares, dedicados ao grande amor de sua vida, Beatriz de Azevedo. (P.S. Não consta que essa Beatriz tenha recebido algum tapete). Para Chico (e Edu Lobo), é uma atriz, meio indefinida, que de longe não se sabe ao certo se apenas decora o seu papel, dança no sétimo céu ou acredita que é um outro país. Triste e melancólica, a Beatriz buarquiana. Etimologicamente, Beatriz é “aquela que torna feliz”, o que me lembra de certa forma. E finalmente, a Beatriz musa inspiradora de Dante, que, dizem, a viu uma única vez e fixou-a para sempre em sua memória).

7 comentários:

Mulheres de Atenas disse...

Este blog ainda se transformará num livro...
Ele estará na lista dos 10 mais vendidos da Times por 1 ano e será traduzido para várias línguas!
O legal é a expectativa de ver o próximo texto... Está ficando cada vez mais difícil escrever!
Muito bom ‘Beatriz’!

Unknown disse...

ei moça... mas por qual motivo vc não me falou deste espaço?rs então, não sei se é bom ou ruim parecer com a mãe, sempre luto pra não ser como ela em alguns aspectos, no entanto vejo que fiz como ela assumi meus irmãos como filhos e não pari nenhum, inconscientemente me dediquei à criação deste "filhos" e não pensei em mim! o fato tapete: é assim mesmo, não se sabe o motivo, mas sabemos quando é o homem da sua vida, muito estranho mas é verdade, a gente sabe! agora qto as japonesas, sinto em dizer: elas estão certas rsrsrs bjim e aquele abraço com carinho da KK PS. me perdoe mas preciso te linkar mais uma vez, ah, sobre aos contos gostei da proposta, não conheço muito as regras, mas vou tentar, obrigada por fazer parte do meu mundo!

Marco Antonio Araujo disse...

Tive uma identificação com esse post.
Minha mãe criou e cria sozinha a mim e ao meu irmão. Considero ela uma heroína.

Johnny M. disse...

Parabéns, vc escreve muito bem e vê-se que tem um belo cabedal de cultura. Esse Mofo TV é realmente ótimo. Pra mim, então, que vivi os anos 80 e hoje morro de saudade, o youtube é uma espécie de tunel do tempo, fazendo-me voltar a ser criança. Ah, e gostei da homenagem ao Chico no título do blog.
beijos

Gabriel de Oliveira disse...

Muito bom... Vocês souberam tetratar perfeitamente a imagem de uma verdadeira heroína. Parabéns pelo blog e muito sucesso. Ah, acredito que vocês devam publicar um livro com esses textos. Não é uma má idéia...

Jepre disse...

Adorei o texto!
Posso identificar a escritora ou
a regra é manter o segredo???
Mto bom meninas! Adorei o blog, vcs tem talento! Gostei mto mesmo,
tem que ser publicado, nem que eu como produtora cultural tenha que fazer desses textos um livro! hahah
Parabéns amiga, me identifiquei mto com o texto, pensei eu poderia ter escrito algo com esse título tb! Ahh é verdade as japonesas morrem de medo de casar! bjoss

Mulheres de Atenas disse...

PERFEITO!!!
A definição de Beatriz foi a melhor!!!!