domingo, 11 de julho de 2010

Do falar de si

Nasci numa cidade aonde haviam, invariavelmente, para as minhas condições, duas escolhas: ficar lá, casar, ter filhos, ou, ir embora. Fui embora. Fomos embora. Meu pai foi o protagonista da revolução de nossas vidas, e, ainda hoje, me pergunto o motivo que o levou a tomar tal decisão. Tenho certeza de que muito foi por nossa causa, minha e de minhas irmãs, mas acredito que ele também tinha consigo algo que lhe afugentava de lá.
Filho de pais humildes e agricultores, optou por não continuar na roça, que era seu destino inicial. Único dos onze irmãos que terminou o terceiro grau. Minha avó dizia que ele, enquanto os irmãos iam à labuta do sol e enxada, se escondia em cima de uma árvore e ficava lendo livros que conseguia na única escola. Tornou-se funcionário público. Quando pequena, eu achava uma graça nas suas conversas, falava com a gente usando as normas de gênero e número, e eu perguntava por qual motivo o pai falava tão certo conosco. Ele ria. Uma vez, a mulher que cuidava de mim e minha irmã, nas horas que o pai e a mãe trabalhavam, disse que tínhamos um pai de ouro. “Nunca conheci um pai tão carinhoso com as filhas”. Lembro de sentir orgulho, mas naquela idade não tinha noção do tamanho disso.
Daquela cidade tenho as melhores lembranças. Da infância loucamente feliz, com férias na avó, bicicleta, bola, esconde-esconde, rua até a mãe chamar pra dormir, joelhos esfolados, primos comparsas, amigos inseparáveis, pé de laranja, nogueiras gigantes, florestas onde se escondiam os maiores perigos imaginados por crianças traquineiras. Da adolescência com uma trupe de amigos que se conheciam desde a pré-escola. Festas com lingüiça e refrigerante, antes das descobertas alcoólicas. Primeiros beijos e abraços quentes. Paixões escondidas, carnavais até amanhecer.
Fomos embora. Paramos numa cidade que, embora muito pouco cosmopolita, me trouxe convivências que formaram grande parte do que sou. Lá, como na cidade natal, acho que vivi tudo no tempo certo, embora com alguns atrasados para certas coisas. Veio a faculdade, movimentos, identificação com grupos, músicas, novos amigos misturados com os velhos. Mas tinha algo que me mandava embora de lá, talvez nessa época entendi um pouco do que o pai sentia. Ao mesmo tempo que queria sair, tinha medo de deixar, medo da ausência, e até mesmo medo de não sentir falta. Hoje pouca falta eu sinto, e isso me dá frio na barriga. Tenho nostalgia dos tempos que lá vivi, dos amigos que ficaram longe. Mas grande parte deles também deixou-se ir e não mais estão. Isso me conforta um pouco, porém com tristeza quando vejo que a vida vai passando e nos levando cada vez mais longe uns dos outros.
A cidade que habito não tem cara, ou eu ainda não a vejo. Herdo a cultura do paranaense de não ter uma identidade. Talvez por isso seja tão fácil deixar os lugares e procurar outras estradas. Estou no caminho para descobrir em que encruzilhada virar. Tenho problemas que, senão resolvê-los, virão escondidos na minha mala. Por isso, agora não estou com pressa de sair. Para chegar mais forte no outro lugar que me espera, tenho que habitar aqui. Sei que nunca estarei completamente preparada, mas tenho tentado aprender no caminho, do ficar e do partir.

L.

3 comentários:

AC disse...

A partida é sempre um corte em algo, mas também a tentativa de alargar a nossa dimensão.
Que os desígnios sejam auspiciosos!

Mulheres de Atenas disse...

Que texto lindo! Adoro quando, apesar de sermos três, nos sentimos iguais. Eu sou estrangeira, já sinto como se não tivesse mais casa, nenhum lugar é um lar para mim.
Beijos,
Lily

Mulheres de Atenas disse...

Não sabia dessa coisa do paranaense e sua falta de identidade (looser!). Bom, nem preciso dizer, traduz a mim também. Fico a pensar se algumas coisas escritas ali fora pura coincidência ou fruto de nossas conversas. Parece que já falamos sobre isso, não?