quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Seu nome é Maria

Eu não sei exatamente quando ela deixou de sorrir. Mas sempre soube que ela não era o tipo de mulher que fazia os outros rirem. Uma avó doce a sua maneira. Seus carinhos não eram em gestos, afagos, como a maioria das avós faz. Seu afeto era mostrado através de muita comida na mesa, das flores do quintal, que quando entrássemos no carro se transformariam num buquê que durante a semana que estava por vir enfeitaria a nossa mesa da sala. Sua dedicação se materializava nas lágrimas cada vez que saíamos para a viagem.

Talvez ela tenha desaprendido a sorrir quando enterrou o primeiro filho, ainda jovem, quando ela deveria ter mais ou menos a minha idade hoje. Ou, pode ser que seus sorrisos se foram junto com o jovem namorado que foi para a guerra e quando voltou, não se sabe se por força ou vontade, a encontrou casada e com um filho nos braços.

Ela já estava aqui quando muita coisa no mundo aconteceu. Das duas guerras, ela carrega consigo o hábito de guardar todas as sobras de comida porque nunca se sabe o que faltará amanhã. Mantém também todas as latas, potinhos e pacotes de todos os tamanhos guardados, afinal, em tempos de guerra as fábricas não funcionam, as embalagens são mais caras e tudo o que puder ser reaproveitado é bem vindo.
Ela também viveu durante a ditadura, mas isso pouco lhe afetou, afinal, para ela a vida era uma eterna espera pelo marido caminhoneiro, cuidar dos filhos, colher legumes do quintal, armazenar o cereal produzido nas chácaras, matar galinhas para a canja, tirar o leite da vaca. Pouco, ou talvez nada, vinha do mercado. Políticas públicas pouco lhe interessavam, seus filhos tinham escola e hospital, isso bastava. Jamais desperdiçaria com um jornal ou uma revista as valiosas moedas que poderiam render um picolé aos filhos. Se escutasse Caetano falando dos caracóis ou Chico aos seus caros amigos, talvez até as achasse as palavras bonitas, mas não as compreenderia, afinal, música para ela eram as polonesas, tocadas ao vivo na rádio aos domingos.

Ela fala polonês, mas nunca nos ensinou. Entendemos apenas umas expressões que resmunga quando fica brava. Sempre achamos que fossem palavrões, até descobrirmos que ela jamais falaria algo proibido, apenas pedia a benção divina para os desobedientes.
Ela não é um exemplo de candura e muitas vezes acho que é um exemplo de como não se deve ser. É extremista, pudica, preconceituosa, rude e teimosa. E o maior dos seus defeitos e o que mais me maltrata é que ela é meu espelho. A imagem é distorcida, é claro, afinal, entre o meu nascimento e o dela se passaram 60 anos. Este reflexo é pior em muitos aspectos e melhor noutros poucos.

Seu nome é Maria e ela é Marias. É a Maria de Elis Regina, “é o som, é a dor, é o suor, é dose mais forte, lenta, de uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas agüenta”. De vez quando parece Maria Bonita de Lampião, com garra e coragem para enfrentar qualquer desafio, qualquer sertão. É também a Maria Mãe de Jesus, que sofre pelos seus filhos e para cada cruz que cada um deles carrega, ela leva outras três, rezando terços e assistindo a missas ao longo do seu calvário.
E dentre tantas outras Marias que ainda não foram citadas e que estão dentro dela, tem a Maria de Chico Buarque, aquela Maria sobre a qual não queremos falar, mas às vezes é inevitável. Aquela Maria que lembra mar, que lembra um assobio, que lembra um sofrimento, que ela não merecia.

Tenho medo de ficar com ela e tenho medo de não ser como ela. Dona de uma força que é só sua, mas ao mesmo tempo dona de uma resignação que não lhe permite sonhar.
Talvez eu também, depois de toda uma vida, desaprenda a sorrir. Se aos 23 anos acho que se parar para pensar sobre tudo o que há de errado eu deixarei de sonhar, quem dirá quando eu tiver a idade dela e tenha tempo apenas para pensar, já que o corpo não obedece mais e nem mesmo a mais simples atividade pode ser feita sem o auxílio de alguém.

Hoje ela voltou a sorrir, ou talvez esteja sorrindo pela primeira vez. Não há ninguém que tenha estado ao lado dela sua vida toda para contar com certeza. Uma pena que tenha aprendido a gargalhar quando deixou de ser velha e voltou a ser criança. Tudo isso aos 82 anos, no enterro da filha 30 anos mais nova que ela, quando a tristeza foi tanta que a razão não resistiu.

Saudades,

Helena, um tanto melancólica, um tanto Carolina...

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Eu que não fumo QUERIA um cigarro

“Você tem exatamente, três mil horas pra parar de me beijar
Meu bem, você tem tudo, tudo pra me conquistar.
Você tem apenas um segundo, um segundo pra aprender a me amar.
Você tem a vida inteira, baby, a vida inteira pra me devorar”

Sempre lembro desse trecho de música quando me vem a cabeça alguns encontros que tive. Encontros casuais, que se não fossem, seriam ridículos. Não acredito em sorte ou destino, mas em acasos. A vida também têm dessas, e os acasos tem a vida. Igual aquela frase do Vinícius que diz: “a vida é feita de encontros, embora hajam tantos desencontros pela vida” (mais ou menos assim).

O acaso produz situações inesperadas, geralmente ricas e fortes. É ‘só’ estar no lugar certo, na hora certa e ser o tipo de pessoa que atraia um outro determinado tipo de pessoa, simples não!?!? Nem tanto, nem tanto!! Contraditoriamente temos que estar preparados para o acaso, no sentido de estarmos abertos a todo e qualquer inesperado que a vida pode nos proporcionar, mas o problema é que nem sempre estamos.

Pra contrariar qualquer racionalista ingênuo, o tempo todo idealizo (não vou ousar a meter todo mundo nisso) coisas, pessoas, lugares, o passado, o presente, o futuro. O passado que sempre fica melhor nas lembraças do que realmente foi, o presente que não vivo pensando no futuro que sonho. Oras! Seria tão mais simples parar de idealizar e viver, mas quem disse que é fácil?!!?

Geralmente não tenho coragem pra dizer tudo que eu penso, então prefiro que outros digam por mim. No entanto, fico prejudicada pois as pessoas não são adivinhas, e na maioria das vezes não fazem o que eu queria que fizessem pelo simples fato de eu não dar palpites. Não digo isso em relação aos afazeres da vida: estudo, trabalho, essas rotinas do tempo. Falo em relação a coisas que geralmente nos tornam mais vibrantes, frenéticos, dançantes, enfim, as paixões, os amores, as paqueras, os flertes.

Falo dos acasos, pois não acredito em destino. Não, não é cetismo, é simplesmente saber que nós fizemos a nossa história, logicamente que rodeados das circunstâncias e limites de cada momento. Pronto! É justamente esse o ponto que me dá calafrios de pensar. Saber que no fundo os acontecimentos da nossa vida dependem da gente e dos acasos, que, no limite, também os fazemos, ou seja, saber ousar, experimentar e se deixar levar. Sabores e dissabores, encontros e desencontros.

E, assim, é claro, nem sempre a vida dá certo. Gosto de fazer a boba comparação com o jogo da velha, “nem sempre dá certo”!! Eu, como tenho alma de Carolina, sempre lembro da poesia da Florbela Espanca, na parte do desencontro, obviamente: “sou talvez a visão que Alguém sonhou / Alguém que veio ao mundo pra me ver / E que nunca na vida me encontrou”.
- “Ahhh! Que coisa horrorosa”, dirão muitos. Alívio pra eles que são o tempo todo decididos, cheios de si e certeiros! Match Point – digo eu. Bem no estilo Wood Allen.

Ps. O que tem haver o trecho da música lá encima?? Certamente a coragem de dizer tudo aquilo que não consigo, principalmente fazer os segundos virarem muito tempo, e, intensamente, fazer o muito tempo virar segundos.

Com atraso, receio e desculpas,

Carolina.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

The end

Gosto particularmente de filmes que não tenham finais felizes. Finais românticos felizes. Passei a semana inteira com essas duas frases na cabeça, sabendo que escreveria sobre isso, mas não como continuar. Em um de seus haicais, Leminski renuncia a realidade, “esse baixo-astral onde tudo entra pelo cano” e diz querer viver de verdade, escolhendo o cinema americano.

O filme que me fez ver como eu gosto de histórias de amor que não precisam terminar bem não vem ao caso. Até porque ele fala da relação entre mães e filhas, o que já foi abordado nesse blog. Apesar de ser americano, não há final feliz com o casal, embora tudo pareça ser encaminhado para isso. O final não-romântico, mas real, salva o filme dessa mediocridade de que para sermos felizes, precisamos encontrar o homem/mulher de nossas vidas e, assim, dissipar todo o mal que possa existir.

Crescemos ouvindo, lendo e vendo que o final deveria assim. E tudo isso o que escrevi se parece com o velho e batido “felizes para sempre” dos contos de fada. Por que não gosto de finais românticos felizes? Ora, simplesmente, porque isso não condiz com nossa vida, que é contínua e carrega fins e recomeços todos os dias. E mesmo diante da morte (o maior final), e olhando para trás, creio que a gente não vai saber se viveu realmente feliz para sempre algum dia. (No terreno do além eu nem vou adentrar).

Sei que, em qualquer esfera, a gente escolhe, renuncia, termina, volta, esquece, passa por cima, encontra outros amores/empregos/amigos e vive tudo novamente. E mesmo que seja sempre o mesmo a vida inteira, os ciclos ainda existem e sem eles tudo perderia a graça, até mesmo a graça dos contos de fadas. (Lembrei de Vinícius, que tem um poema onde conta a história de uma vida – com ênfase ao amor – em 14 versos. Eis alguns: “...E começar a amar e então sorrir/ E então sorrir para poder chorar/ E crescer, e saber, e haver, e perder, e sofrer, e ter horror/ De ser e amar, e se sentir maldito/ E esquecer tudo ao vir um novo amor...).

Sei também que toda boa história precisa terminar. (Menos as de Sherazade, onde o fim da história seria a própria sentença de morte). A narrativa é um recorte, um fragmento de uma ou mais vidas, capazes de distanciar o leitor da sua própria realidade por instantes e até provocar nele uma catarse. Depois disso, se a história do filme realmente for boa, aquele que o assistir não será mais o mesmo. O final de um livro, de um filme ou até de uma narrativa musicada representa, acredito eu, também o final de um personagem, de uma vida contada. Talvez por isso, incomoda-me tanto as continuações no cinema.

Finais têm me arrancado noites de sono e me rendido boas reflexões nos últimos meses. Embora saiba que todo fim traz em si um recomeço, a dor do término e principalmente a incerteza, quando se trata de renúncias, são um calo no meu sapato. Sabe aquela sensação de epitáfio? Aquela de “deveria ter feito isso, aproveitado enquanto era hora, escolhido tal coisa, renunciado a tal outra enquanto dava tempo, mudado de cidade, de casa, de ares”? Nosso genitor Chico compôs “Vida”, que é tanto uma narrativa, como um desabafo de uma mulher que verteu sua vida nas casas dos homens de vida vadia, fez poucas e boas, mas sabe que ali foi feliz. Acho linda a música, principalmente porque fala de portos, de cais, metáforas certeiras para se falar de vida. Talvez porque seja mesmo o final das coisas um porto. Pegar o barco e sumir no horizonte requer coragem para arriscar a pele, mas proporciona belas paisagens.

Uma vez li uma crônica do Veríssimo em que o protagonista bebia desolado em um bar imaginando como seria sua vida se tivesse feito determinadas escolhas. E como se num passe de mágica, ou por efeito do álcool - vai saber, as alternativas se materializam diante dele. Aparece o homem que ele teria sido se tivesse feito um teste para goleiro, se tivesse prestado concurso, se tivesse casado com uma antiga namorada... Todos eles foram mais infelizes. É uma tentativa interessante de se provar que a gente tem que viver mesmo com um pé no futuro e não no passado e nem no “e se” que, aliás, é o nome da crônica.

Para não dizer que não falei de mulheres, preciso compartilhar da letra linda que ouvi na voz de Elis Regina. “Maria Rosa” é o nome da música e, pra variar, fala de finais. Para ser mais exata, o final de uma menina que “era um anjo de formosa” e que hoje vive em farrapos. E cada trapo que veste não é apenas necessidade, mas representa uma saudade de algum amor que passou. E de repente comecei a pensar que triste era a vida Maria Rosa. De cabelos grisalhos já devia carregar inúmeros farrapos, mas e eu, tão nova, quantos trago em mim? (Juro que me arrepiei quando ouvi o final da música – justo o final! – que diz: Vocês, Marias de agora, amem somente uma vez / Pra que mais tarde essa capa não sirva em vocês).

Dizem que os escritores costumam escrever para extirpar os fantasmas que lhes assombram. Como os meus atualmente são os finais, acredito que depois desse texto eles não devam me incomodar mais. Mas não posso garantir que os cemitérios deixem de existir na minha cabeça.

A Rosa
(Não arraso projeto de vida nenhum – a não ser o meu. Não sei sambar – e não tenho vergonha de assumir isso em pleno de carnaval. Não sou artista, ando levemente bandida e só um pouco falsa – porque ninguém é de ferro. Vadia, não. Não atualmente. Nunca tive vocação pra gueixa. Ser santa e fogosa deve fazer parte de todas nós, mulheres de Atenas, por isso não me descreve apenas. Por que estou Rosa, então? Sei lá, só porque me gusta estar, e não ser, Rosa...)